cenas-acontecimentos
O que serão, no seu conjunto, as cenas ou acontecimentos dos filmes que verdadeiramente afectaram ou perturbaram a nossa vida?
Haverá qualquer coisa como um conjunto dessas cenas ou acontecimentos? Um arquivo a que possamos conferir uma totalidade ou identidade?
Acho que não. Uma totalidade desse tipo é uma ilusão que nada tem a ver com a experiência da cena ou acontecimento. O sentido destas cenas ou acontecimentos será sempre lacunar. Há conexões, isso sim, um impulso para conectar, ligar.
Falo de cenas de filmes, não no sentido cinematográfico habitual, mas no sentido que lhe deram na literatura Virginia Woolf ou Thomas Hardy, que lhes chamou visões e que são uma situação, acontecimento ou série de acontecimentos que de algum modo misterioso e incompreensível cristalizaram uma experiência afectiva na qual todos os sentidos participaram, sentidos desconhecidos, que não reconhecemos como nossos, mas que atravessaram a nossa vida como uma força impessoal e nela abriram uma diferença, quer dizer, uma necessidade de conexão com um fora. Quer dizer que nesse momento há um deslocamento: estamos fora de nós, algo em nós não somos nós ou algo nosso está fora de nós.
O acontecimento a que aqui aludo tem a ver com uma experiência de deslocamento.
"Compreender" um acontecimento deste tipo não é algo racional nem consciente. O fenómeno aproxima-se mais de um tremor de terra - de vida -, cuja intensidade é suficientemente sensível para deslocar todas as relações entre as coisas. Não sabemos absolutamente nada acerca das razões que geraram esse tremor, mas que ele afecta um âmago qualquer para lá da totalidade de um filme, de uma vida ou de uma multiplicidade de vidas.
O modo de afectar de uma cena, visão ou acontecimento não é compreensível enquanto totalidade, porque o seu modo de ser é o da abertura, da fenda e da fissura.
Talvez seja por isso que, quando, num filme, algo assim acontece, logo se autonomiza por completo do filme de que faz parte, mas também da vida na qual se torna sensível, a partir de alguma mínima, mas excessiva diferença, que faz romper e querer sair. Este processo requer muita transmutação e poesia, se não queremos um nado morto.
Qualquer instância definida como um conjunto é por definição fechada e tende a perder a capacidade viva do sentir, porque o acontecimento se dá como abertura e diferença.
Subtis ou avassaladoras, estas intensidades indeterminadas têm a força de nos conectar com o que não conhecemos. São forças de atracção ou repulsa, ligação e ressonância com algo de fora, que não se deixa reduzir a qualquer conjunto.
Não somos conjuntos, ainda bem. Ou não seríamos capazes de experiência estética. Somos amálgamas, ligações, conexões, definidos por um padrão que resiste, entre o turbilhão e a linha.
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